quarta-feira, 23 de março de 2011

sem aspecto

É preciso ser:

um pouco de tudo
um tudo de tanto
um tanto de louco
um louco de pouco

aspecto
falta aspecto

neste mundo, entretanto
não é preciso ser

ser é impreciso.

terça-feira, 22 de março de 2011

Eu senti o fim. Pela primeira vez, eu o senti bem leve na palma da mão. Vinha em paz, como um inseto inocente, riscando de patinhas estremecidas um caminho na minha pele. Na mão, no pulso, no braço, no ombro, no peito, sentia. Até ele se infiltrar no peito e furar o coração de vez. E fui sentindo e sentindo no coração, e senti tanto, tão intenso que repetia para mim mesma em sussurro, espontânea, quase como num reflexo de dor : é o fim é o fim é o fim. E era mesmo o fim, sem segredos, sem máscaras. O fim. Ele, nu. Desde o início era o fim que não assumíamos.
Eu era verde, você vermelho. Eu era curva, você reta. Eu era tão confusa e você tão simples. Ao fim chegamos, senti, e até que enfim, reconhecemos que no fim já começamos, também no fim sempre estivemos. Recolha sua alma em luto, pois nos resta lamentar a perda de uma história nunca escrita. Enquanto isso, rezo ao céus. É paciência que eu preciso, que precisamos.
Admiro a receita, o tempo de espera. Mas há fome. Há pressa. Há sonhos.

sexta-feira, 18 de março de 2011

...com saudade do tempo que vivia

o corpo que vive
e deita
que vive e deita no asfalto
e observa estrelas
e pensa
que não existem
que não existem estas estrelas
que estão apagadas
é também um corpo estrela
que está apagado
e não existe
e não pensa
que o corpo é observado
pelas próprias estrelas
que não existem
deitado no asfalto
que vive

quarta-feira, 2 de março de 2011

Do amor

Não falo do amor romântico, aquelas paixões meladas de tristeza e sofrimento. Relações de dependência e submissão, paixões tristes. Algumas pessoas confundem isso com amor. Chamam de amor esse querer escravo, e pensam que o amor é alguma coisa que pode ser definida, explicada, entendida, julgada. Pensam que o amor já estava pronto, formatado, inteiro, antes de ser experimentado. Mas é exatamente o oposto, para mim, que o amor manifesta. A virtude do amor é sua capacidade potencial de ser construído, inventado e modificado. O amor está em movimento eterno, em velocidade infinita. O amor é um móbile.
Como fotografá-lo? Como percebê-lo? Como se deixar sê-lo? E como impedir que a imagem sedentária e cansada do amor não nos domine? Minha resposta?
O amor é o desconhecido. Mesmo depois de uma vida inteira de amores, o amor será sempre o desconhecido, a força luminosa que ao mesmo tempo cega e nos dá uma nova visão. A imagem que eu tenho do amor é a de um ser em mutação. O amor quer ser interferido, quer ser violado, quer ser transformado a cada instante.
A vida do amor depende dessa interferência.
A morte do amor é quando, diante do seu labirinto, decidimos caminhar pela estrada reta. Ele nos oferece seus oceanos de mares revoltos e profundos, e nós preferimos o leito de um rio, com início, meio e fim. Não, não podemos subestimar o amor, não podemos castrá-lo. O amor não é orgânico. Não é meu coração que sente o amor. É a minha alma que o saboreia. Não é no meu sangue que ele ferve. O amor faz sua fogueira dionisíaca no meu espírito. Sua força se mistura com a minha e nossas pequenas fagulhas ecoam pelo céu como se fossem novas estrelas recém-nascidas. O amor brilha. Como uma aurora colorida e misteriosa, como um crepúsculo inundado de beleza e despedida, o amor grita seu silêncio e nos dá sua música. Nós dançamos sua felicidade em delírio porque somos o alimento preferido do amor, se estivermos também a devorá-lo.
O amor, eu não conheço. E é exatamente por isso que o desejo e me jogo do seu abismo, me aventurando ao seu encontro. A vida só existe quando o amor a navega. Morrer de amor é a substância de que a vida é feita. Ou melhor, só se vive no amor.
E a língua do amor é a língua que eu falo e escuto.


Paulinho Moska