segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Adeus, doce ilusão!

Ela vestia um belo verso quando cruzou minha avenida clandestina. Mal pude acreditar, pois as narinas saltaram dilatadas do repouso das pernas e correram em direção ao bálsamo enigmático mitigado pelo cheiro decomposto que subia dos bueiros. Eram fios mais longos que novelo, mais pretos que descanso de sol, mais vivos que luz flutuante de Vênus sobre a escuridão indecisa escrita por Jano em Janeiro. Eram seus cabelos embolados em vírgulas; eram suas curvas variando as direções na beira da minha estrada; era seu perfume suave como pétala ensaiando arte no vento; era eu me perdendo, eu me escondendo, perdendo, esquecendo, perdendo, diminuindo, caindo, morrendo, perdendo, até que sumi. O início é aqui.
Eu desapareci de mim. E sua nudez desavergonhada, a cada esquina, arrancava sem piedade uma palavra da pele. O eu desconhecido e selvagem, ousado que era, pôs-se a recolher os pedaços abandonados por ela na passagem. Aproximava-se. Aproximaram-se, nos aproximamos.
Sem permissão ou tempo, colávamos as letras como mosaicos contemporâneos demais para gerar o encaixe perfeito. Nunca nos completamos, sei. Entre seus peitos frios e meus dedos ferozes, os versos estavam zonzos ou tortos, os acentos nos lugares improváveis, as reticências separadas das ideias de não se dizer o que sente, o ponto final no começo. No começo de nossa loucura. O eu não sei quem ainda esvaía-se em suor e a bela derretia-se polida com sonhos.
Até então, ficávamos mudos por horas, eu lendo no corpo dela muitos livros. Mas, de repente e não mais, saíram os sons primitivos. Tão perigosos e afiados como lâminas de caça. O fim é logo.

"Eu o vejo tão palha. E palha queima no fogo". Ela era fogo quando ria. "Você precisa se banhar como pimenta, anda sem tempero". Ela era mistura de alho e salsa e sal. "Diga-me o que eu ainda não sei". Ela sabia mais que eu. "Você me dá sono". Dormia em meus braços.
Aqui está ele, o fim.
Eu, o eu mesmo despertou confuso com o silencio na rua. Assisti quando não mais nos bastávamos, o eu perdido estava enterrado e percebi o quão pequeno meu ser revelava-se diante dela, que foi embora sem dizer au revoir!, querido. Mas lembro bem que li em suas costas: você é um vazio infinito.
Ela esteve na cidade por 38 dias, em meu corpo por 9, em meu pensamento por todos os outros dias que pude viver até agora. Jamais voltei o todo de antes. É por isso, não desejo, a qualquer momento, esbarrar novamente com figura mágica assim, apesar de achar que cada homem reconhece este estado transcendental uma única vez, e que magia é uma das poucas coisas que nos faz realmente acreditar que a vida vale a cruz refletida.

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