domingo, 30 de maio de 2010

Bela aceitou o convite de namorar o mundo.
Guardou os sonhos na bolsa e levou no corpo um vestido querido rendado de nuvem, desses que saem do armário em datas incomuns . Esta era uma delas: o grande encontro com o mundo. Ensaiou o que ia dizer e no final de cada ensaio modificava as palavras, mas não a essência. Bastava contar os lugares que vira, revelar a nova casa, o novo canto. Bastava viver de novo igual ao ontem e ao amanhã, entretanto, complicava a repetição. Catou margaridas no canteiro vizinho, trocou os passos e os passados. Foi escrevendo na calçada as honrarias, bailando a ponto de embolar os braços na cintura quando parou. Bela parou e Bela parou e parou. Até Bela parar de vez.
Procurou na bolsa e nada. No bolso e nada. Olhou em torno e nada. Estava esquecendo. Onde está o amor, Bela? Riu-se completa e foi buscá-lo no caminho.
Deve ter deixado em algum lugar por aqui que não sabe onde.
Não sabe onde.
Não sabe onde mesmo.
Você não viu, leitor, por acaso, uma metade da laranja, do limão, do abacaxi? Eu também não vi, já falei, mas ela não desiste e ainda procura. Jurou que não vai namorar o mundo com as mãos vazias de outras mãos.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Esclarecimento consciente

às vezes, tudo que a gente mais precisa é mudar de si.
adeus:












fui morar num passarinho.

O mistério

Andava em direção ao escuro. Era um cais comprido demais para se perceber o fim, e enfim, o mistério na ponta estava vestido de não sei e pintado bem escuro que eu não via. Ia.
Andava sozinha. Minto, sozinha não. O medo estava comigo. Guiava-me sussurrando em meu ouvido com sua voz tão suave que me abraçava e eu não mais sentia o corpo. Eu, pena, flutuava. Vá vá, dizia constante, troque os passos sem saber. O mundo estava de cabeça para baixo. Eu torta e tonta só pensava que o medo não guia ninguém, apenas retrai. Mas o meu medo estava tão curioso para ver o que morava na ponta escura do cais que mais parecia ser coragem.
O escuro me consumia aos poucos. Eu desaparecia e no fim do cais sem fim fui a ponte a qual o medo atravessou. Avistei a distância. Saltei alto para agarrar o céu esquecendo-me de que não tenho asas. Esquecendo-me de que minhas asas estão na mente e só voam dentro da mente. Saltei mergulhando na profundidade indecifrável e então, ao abrir os olhos, vi que a escuridão na ponta do cais sou eu.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

a poesia.

Não bebe um poeta tantas linhas programadas. tortas ou planas, que sejam intensas e poucas.
ou muitas, que sejam.
Não bebe um poeta louco ou são.
o grito. o pedido.
a bosta no sapato às seis da manhã. às vezes às sete. às vezes.
tudo é motivo moído mastigado e cuspido.
tudo é tema, é base.
e o poeta edifício edifica calmamente no sinal vermelho.
não rouba ideias de outras cabeças.
não está ali para fazer química de letras. nem física de encontros. nem sensibilizar sempre.
atenta pros olhos.
pros sonhos estragados.
não se embriaga de nenhuma metade, a metade não enche o copo. e o copo é meio vazio.
engole a dose completa.
A palavra fede, espeta e belisca.
Não bebe um poeta preto no branco.
Ela tem cores, odores, texturas.
Ela tem tempo, medo, medida infinita.
Ela viaja pelo mundo arrumando bagagem.
dá poeira à estrela.

ela tem tudo que só cabe em si.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Ser gramática

Mari passeia entre linhas

Sorri nos pontos
Devora as vírgulas
Cai de um parágrafo

a outro
E cansada,
adormece sobre o
travessão.

terça-feira, 11 de maio de 2010

O banho

Há tempos sonhava com esse dia.
O peso da obrigação nas tarefas doía em suas costas como se carregasse consigo o universo inteiro. Familiarizara-se como transportador ou carregador das coisas existentes; o carteiro caminhando com pedras. Levava na bagagem tantos quilos que a obesidade parasitava no corpo daquele homem sugando seu líquido até desidratá-lo, absorvendo os sentidos para torná-lo homem comum.
Ser comum é ser mais um na multidão. É aderir pressa ao cotidiano, maquinando-se como personagem na cidade grande. Não viver, encenar. Se adequar aos métodos práticos, quase esquecer o que é raro. O comum trazia um desanimo incomparável.
Mas chegou o dia. E veio, meio assim, sem avisar.
A água escorreu pela pele, desenhando gotículas e acariciando cada mísero poro negro, ele pôde sentir o céu rente ao peito. A espuma do sabão beijou o corpo delicadamente. Sentiu aveludar a alma. Foi pelo ralo todo o peso, toda dor, todo desespero. Banhava-se de paz. As pedras para aliviar o futuro foram pelo ralo com o fluido incolor na harmonia de um balé. Saiu dali tão claro a ponto de brilhar, e pôde, enfim, sentir leveza. Abriu as asas.
Limpou-se do mundo. Sorriu.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Juleu e Romieta não é romance

Tinham lá seus vinte anos. Dois a mais, exatamente. Era a idade da irracionalidade, a idade da desordem, do caos. Deveria ser. Tinham a idade das revoluções e amores corajosos. Sentados, um à frente do outro como reflexos espelhados, fixavam os olhares no ponto alvo: outros olhos. Mas não tinham o tom de parir inveja alheia. Bastava matar por alguns segundos sua atenção que ficava simples interpretar o teatro absurdo. Porque tinham tudo para dar certo, porque tinham tudo, tinham uma expressão velha e pálida. Há quem não goste da felicidade. Há quem procure o obscuro, o sem sentido. Faltava ali o caos que a idade proporciona, as revoluções. Estavam chatos. Estavam cansativos. Estavam repetitivos. Estavam prolixos. Estavam, que fiquei também. Até descrevê-los é chato. É cansativo. É repetitivo. É prolixo. (Essas palavras também estão isso). Estavam cansados um do outro, e eu deles. O texto era inverossímil demais para ser lido e acabei ficando enjoada e vomitei um tanto de falsidade e fui cuidar da minha vida. Agora, o que mais quero?
Quero um romance de verdade.

sábado, 1 de maio de 2010

De palavras e versos, bons amigos se fazem!

Quis levar um tanto da umidade de seu ar
Ele respira muito seco no interior deste país
Levou gotas de poesia num embrulho discreto
Encantou levemente seus sonhos
Sonhos cruzam-se no caminho da palavra
Sobre os dois, o que dizer?
Fosse fácil, já tinham o feito há tempos
Mas há tempos ninguém cita poema como ponte entre pessoas
Entre carinho, conversa, vontade do amanhã
Ele, vive na frente do sol
Ela, vive na frente da flor
E vão vivendo assim, tão longe
Desencontrados encontrando
Desconhecidos conhecendo
Um ninho perfumado traçado em letras
As figuras não se movem
As fotografias despertam desejo
O que fala realmente são os dedos
Mas escreve no seu caderno que já anotei no meu
Ainda há de chover no coração do Brasil
E eles estarão lá, meu amigo,
Assistindo juntos ao espetáculo.