domingo, 29 de agosto de 2010

- Sabe? Vocês se olham tanto. Pior. Olhos nos olhos. É bom, mas perigoso demais. - Pedro escuta apenas um seco É.
- Mas eu quero dizer, não me entenda mal, Beatriz, só...Acho isso muito bonito entre duas pessoas. Essa oportunidade intensa de olhar no fundo de outros olhos. Mas vocês não se cansam? Não bate um medo de cair o pano, surgir nua diante dele? Poderá conhecer seus defeitos, incapacidades, confusões. Aí, acaba desistindo. Ele vai embora e você vem sofrer no meu ombro, como sempre. Me deixa morto com as tentativas de lhe arrancar sorrisos, sinto-me estúpido, apesar de valer muito a pena. Bia, abandone esse sentimentalismo, ou melhor, não o procure nunca. Lembra da última vez com o Gustavo? Cismou de escrever cartas piegas e enviá-las para o escritório dele. Primeiro uma vez ao mês, depois duas, dez, quinze. No fim, ele ficou tão irritado e sufocado que se foi. Nós dois ficamos, eu segurando seu lenço enquanto se afogava na tristeza. Agora a mania é olhar nos olhos por horas, como estátuas. Me preocupo. Eu gosto tanto de você, minha Bia, não quero que sofra por viver plenamente. Acho engraçado suas frases reflexivas e vagas. Tanto poéticas, mas tortas. Totalmente...- Beatriz puxa o rosto de Pedro para próximo ao seu, chegando a encostar as pontas dos narizes. Respira fundo e com a expressão rígida, diz:
- Gosto de me sentir completa e completar os outros. Você anda estranho Pedro, me criticando muito. Talvez nós dois tenhamos passado do limite. Nos conhecemos tão bem que perco fácil meu limite em você. Desculpa se o incomodo. Mas você me acha interessante, não?
- Mais que isso. Acho louca.- Beatriz explode em gargalhada.
- Só tenho uma pergunta. Você nunca me olha nos olhos por mais de um minuto. Por quê? Tem medo que seu pano caia e eu vá embora?
- Tenho. Não quero perder sua loucura da minha loucura.
- Não perderá. Você é meu talismã, minha melhor conquista.
Pedro sorri.
- E você é minha fuga predileta para a felicidade.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Uma nova canção

Dos olhos verdes grama, arriscou-se cantando Chico no silêncio da solidão. Passou em passarela pelo mundo não entendendo e parou quando gostou dela cantando Chico em voz afinada de moça também no silêncio da solidão. Sorriram-se inteiros meio sem postura e meio cheios de perfume de flor, mas os dias retomaram o rumo. E os dias permaneceram em diferentes caminhos confusos. Até que, um dia dele decidiu riscar por um caminho desconhecido e bateu de cara com o dia dela. E assim, no susto, foram ganhando os corações gelados e estáticos que há tanto tempo não sentiam palpitações nem sambavam nem pulavam. Chico está compondo uma nova canção deles, escuta. Talvez em silêncio, talvez no silêncio da solidão. Talvez belíssima, romântica Yolanda. Ou louca e crua e cruel. Forte. Ousada. Ruim. Talvez de um belo amor em broto ou do adeus dos olhos verdes que se vão e o choro baixinho ficando atrás da porta. Um drama saído do forno. Um apaixonante conto de fadas, quem sabe.
É preciso acreditar em amor à primeira vista ou à segunda para tocar nos ouvidos. Está difícil.
Mas vá, isso é coisa pra Chico falar, não eu.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Blau Werden



Uma gota vinda do céu caíra sobre Helena. Era um dia tão azul que ela
olhou para cima e se perguntou de onde partira aquela gota que a tocava
logo no peito. Não havia pássaros por perto. Os pombos na praça central ocupavam-se das impurezas no chão. Um desenho no chão de asas sobre as
impurezas. Não havia torneiras ou bolhas de sabão ou nuvens. Somente velhinhos jogando xadrez e um grupo de quase dez crianças traquinas correndo em círculos, fazendo balé de gritos. Gritavam aventuras infantis insolúveis com seus agudos explodindo no azul. Havia também pessoas. Muitas pessoas de muitos pensamentos.
E o ar congestionado por incríveis ideias. Havia tantas pessoas e tantos pensamentos que não era difícil perder seus próprios pensamentos em outros, pois além de entrar na cabeça errada, eles pulavam de cabeça em cabeça preenchendo os buraquinhos esquecidos pelo resto do corpo. Mas o fato: uma gota improvável caíra sobre a alma de Helena e a tocara metaforizando seu corpo em corda de violino, em ponto colorido na tela branca. Helena foi se transformando em lembrança.
Helena sentiu um frio mínimo e discreto na pele e passou a questionar todo passado. Bastava à dúvida seca ser regada pela gota vinda do céu para crescer.
Cresce. Crescendo. Cresceu.
Ficou gigante e dominadora e teve o magnífico poder de expulsar estranhos pensamentos alheios dos buraquinhos esquecidos na cabeça da moça, para recheá-la de interrogações. Pedaços de lembranças num dia muito azul soam desconfortáveis. Um tão azul deveria plantar
a vontade de abraçar o futuro, cantar alegria, alegria. Mas Helena virou lembrança. E não se cansava de indagar o porquê. Queria saber da lógica que há nesta vida de encontros repentinos. Das breves despedidas. Da ferida que deixa um amor mal resolvido, uns escritos pela metade afogados na distância. Do vazio,
da ilusão, da espera. Espera. Foi uma gota assassina caída do céu. Matou-a
instantaneamente e virando lembrança ganhou uma melancolia parda no rosto, descolorindo o entorno. Um desencanto todo. Como se essa gota tivesse ponta afiada de palavras cruéis. Como se os pombos fizessem motim, e houvesse torneiras ou bolhas de sabão ou nuvens demais. Uma gota desaguando em lagoa, em rio, em mar, em Helena, em lembranças. Querendo alguém para tocar. Foi tocar justamente numa estrela tímida,
que de lembranças se embebedou para sempre.

domingo, 15 de agosto de 2010

"Eu tinha um cantinho pra você ficar"

Você já sabia, sabiá?

Eu já sabia, sabiá.

Não é o peito que fala bonito.
Nem a alma.
Nem os olhos.

Invejado pelo peito e pela alma e pelos olhos, está o cérebro.

Que não pulsa.
Que não sente.
Que não vê.
Que é soberano.
Que nos confunde.
Que ama e fala bonito.

ele.


Por mais estranho que pareça ter o amor na cabeça.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Sem poesia

A poluição dos dias
A pressa dos compromissos
A lama das almas
A invenção do desespero

Os olhos que não se olham
Os pés de pisadas rudes
Os sonhos adormecidos
Os meses atropelados de choro

A instabilidade no sentimento
A rosa murcha por falta d'água
A mão cruel da impaciência
A invasão do que não é meu

Tudo, nesta cidade, nesta vida, nesta hora, levou o tempo de mim.
E fico a conversar com os asfaltos e a observar as paredes sem pintura
Nunca vira tanto cinza num muro em cores
E fico com sede da tua poesia ímpar e intensa

Que falta me faz o tom teus versos...

Quando ela chegou e me roubou de mim

Não sei explicar. É que, de repente, senti vontade de plantar jardins inteiros em outros corações. Eu já havia sentido isso antes, embora nunca tenha
ligado os fatos. Para ser bastante sincera com você, eu nunca parei para pensar. Não tenho tanta certeza, mas pensando bem, isso aconteceu logo depois que. Pensando bem, agora estou quase certa de como aconteceu. Sim. Foi ela. A culpa dela. Toda. Agora está claro. É dela, que invadiu meus sonhos, espreitou-me, deitou-se na cama espremendo meu corpo como limão morrendo em limonada.
Fiquei apertada no canto, e torta enquanto ela chegava espaçosa. Suave. Egoísta. Viva.
A culpa é toda dela que veio. Sem telegrama. Carta. E-mail. Telefonema. Eu não sei, mas. Eu não sei, mas tinha a chave e entrou silenciosamente e dominou minha casa no meio da noite. Ou no meio do dia. Oh, como eu estava distraída. Em minhas coisas ela
derrubou seu pó e pintou de sua cor branca demais e deixou seu vazio infinito silencioso, nas coisas. Como possuia a chave é uma boa pergunta.
Como?
As vezes imagino que ela possua a chave de todas as casas do mundo. Ou será que isso só acontece comigo? Ando desligada e por isso permitiu-se estabelecer aqui perto, logo ali. Minto, logo aqui no meio de mim. Fui completamente tomada, roubou-me de mim.
Levou a raiva, a pressa, nem mesmo sobrou um pingo de agonia e no instante no qual aprendia a lidar com a ventania resta a brisa nos passos, melodias, movimentos. É tudo verdade. Foi até melhor assim, pois ainda sinto
aquela vontade boa sobre a qual lhe falei. Posso até, se. Se você quiser, posso até plantar um jardim inteiro no seu coração. Você quer? No meu já o fiz, precisa ver só que paraíso, que cores, que brilho. Tem girassol, margarida, azaléia...E é primavera. Não há sujeira no céu. Não há sujeira nas pétalas.
Ela limpou quando veio e me ajuda a regar quando volta. Volta daquela maneira, sem
avisar e sin. Seu nome? Você já a conhece. Não? Claro que conhece, não brinque comigo. Não se recorda? Você anda distraído que nem eu estava quando. Cuidado então porque ela pode preparar uma. Ah, o nome? Sim, o nome. Cada um pode chamá-la do jeito que bem entender, eu prefiro a forma mais comum. Simples e serena até para se dizer o nome.
Paz.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Ela é sol


Ela é quintal
flor
pé de mamão
pé de limão
jiló
caqui
café doce
varanda
rede
peixe
grito
teimosia
abraço apertado
juventude
alegria
muito
mais

sol.

Ela é sol.