domingo, 31 de janeiro de 2010

Desejo

Desejo a você rede na varanda
varanda para o mar
noite de lua cheia
céu sujo de pontos brilhantes
sol que se põe em cor-de-laranja
praça verde com árvores e passarinhos
dias tranquilos
dias a mil
serenatas apaixonadas
boas histórias para contar
bom livro para ler
sonhos para crescer
desejo muitos desejos
assim como meu grande poeta me desejou
Pernas fortes a caminhar
caminhos a seguir
escolhas
desejo um beijo
beija-flor no jardim
o mais simples
o mais belo
sorrisos
vontade de seguir
desejo carinho.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Pedido de aniversário

Quando nasci pela vigésima vez,
não quis balões coloridos pendurados pela parede,
nem bolo de chocolate coberto por confeites,
nem velas decoradas,
nem sacos de doces ou guloseimas.
Não quis roupas, sapatos e bolsas,
eletrônicos, livros e discos,
passeios, reuniões ou aplausos.
Não, não quis nada disso.

Quando nasci pela vigésima vez,
fechei os olhos fortemente e fiz um pedido para os céus.
Pedi dias amarelos, paz e pessoas.
Pedi pessoas de todas as cores, de todos os gostos.
Pedi pessoas amadas e divertidas,
inteligentes e verdadeiras,
curiosas e incitantes.
pessoas sábias.
pessoas cheias de luz.
Sim, foi isso que pedi.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

O dia passou com a cara de domingo, que era, a esperar o objeto preto com botões numerados soluçar. Um chamado. Um apito. Uma sinal qualquer, menos o silêncio, por favor. Alguém querendo saber como está. Ou contando boas novas. Ou deixando recados. Ou fazendo murchar a saudade. Alguém que respire, menos o silêncio, por favor.
O dia passou sentado no sofá da sala mais da metade de suas horas. Nunca o aposento foi tão bem observado. A tintura saía na parede da janela, no terceiro canto nascia teia de aranha, duas das três mulatas de gesso sobre a estante estavam com rachadura, o rodapé tinha uma mancha amarela, o tapete dobrava em uma ponta...Detalhes que não veria, se não fosse a espera, e o silêncio na espera. No silêncio paramos para ouvir melhor os pensamentos. Foi ali que o dia parou. Foi drama.
O coração disse para a cabeça, vá você. A cabeça disse para os dedos, disque você. Os dedos, revoltados, corajosos, não não não. Recolheram-se no peito.
O dia fez-se em noite, sem barulho, sem trilha sonora. Ficou na paz, para muitos. Ficou no inferno, para si. Uma solitude de domingo.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010



Com o tempo, a gente descobre que o pote de ouro é, na verdade, a busca pelo pote de ouro.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

sou

sou o início.
artigo definido, mas nunca frase completa.
desfaço-me em leve fumaça cinza metropolitana.
nas caras pintadas, sou personagem de mim.
nas ideias tortas e retas tento ser, sem censura.
sou confusão que se enlaça em fita de cetim vermelha.
sou piano e guitarra, na melodia, por vezes, perfeita.
sou escova de dentes com pijama de bolinha lendo na cama.
vestido clássico em noite de festa.
a divisa entre o sim e o não, com direito à placa "bem-vindo a".
poema barroco.
erro.
sou sonho enganado, fantasia carnavalesca.
sou pontos, linhas, vírgulas, exclamações, interrogações, parágrafos...reticências...
montanha de coisas, posso dizer.
montanha de tudo, posso dizer.
às vezes, montanha de nada.
também sou o vazio. um vazio cheio do nada.
sei ser emoção, alguém passageiro, alguém descansando.
e clichês, dúvidas, gírias, dicionários, revoluções, auroras, canções, dias da semana, minutos da hora.
sou dois olhos e um nariz e uma boca e um corpo e muita mais.
gotas no oceano ou oceano de gotas.
às vezes, sou grande e só me vejo.
às vezes, sou pequeniníssima, poeira no porão.
às vezes, sou no ar, passarinho.
às vezes, sou no mar, tubarão.
às vezes, sou na terra, humana.
um recomeço, o fim de um texto.
um ponto final.
uma perplexidade, que nem sei se sou.
sou?

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Balõezinhos, de Manuel Bandeira




Na feira livre do arrabaldezinho
Um homem loquaz apregoa balõezinhos de cor:
-" O melhor divertimento para as crianças!"
Em redor dele há um ajuntamento de menininhos pobres,



Fitando com olhos muito redondos os grandes balõezinhos muito redondos.
No entanto a feira burburinha.
Vão chegando as burguesinhas pobres,
E as criadas das burguesinhas ricas,



E mulheres do povo, e as lavadeiras da redondeza.
Nas bancas de peixe,
Nas barraquinhas de cereais,
Junto às cestas de hortaliças,



O tostão é regateado com acrimônia.
Os meninos pobres não vêem as ervilhas tenras,
Os tomatinhos vermelhos,
Nem as frutas,
Nem nada.



Sente-se bem que para eles ali na feira os balõezinhos de cor são a única mercadoria útil e verdadeiramente indispensável.
O vendedor infatigável apregoa:
-"O melhor divertimento para as crianças!"
E em torno do homem loquaz os menininhos pobres fazem um círculo inamovível de desejo e espanto.









( Poema de Manuel Bandeira e ilustração de Teo Puebla)

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

A carta, Madá

Numa madrugada, quando só, resolveu tirar a limpo uma história que haviam lhe contado sobre Jorge. Acendeu todas as luzes da casa, e revirou os documentos velhos, roupas e tralhas nos quartos e armários. Quis desistir inúmeras vezes, mas inúmeras vezes seguiu em frente com a ideia de desvendar o mistério e revelar aos tomadores-de-conta-da-vida-alheia a inocência de seu marido. Era tarde, estava cansada. Impossível existir tal carta, absurdo, dizia seu coração. Sentiu um leve enjoo no estômago, ardência nos olhos e a vista escureceu. Teve medo de desmaio, respirou fundo e pediu a Deus para ser tudo uma mentira. “Melhor deixar esquecido”. Até que a impaciência invadiu a alma e com pavor suas mãos agiram, quase como máquinas, e derrubaram a montanha de sapatos no fundo do guarda-roupa. Lá estava. A cabeça doeu. No canto esquerdo uma caixa. Objeto de morte ou vida. Cubo preto; revestido por veludo. Antigo; empoeirado; leve; trancado. Mas Jorge era tão estúpido que deixava a chave logo ao lado para não correr o risco de perdê-la.
...
Quando se envolveu na leitura daquele texto Madalena não sabia de mais nada. A folha ainda dobrada continuou dobrada. Bastavam as primeiras linhas para compreender. Era como estar perdida na mata escura, ouvindo vozes que confundem, apenas. Era como se a vida inteira, as coisas, os filhos, fotografias e lembranças fossem ficção e estivessem no último capítulo, no último minuto, acabando para sempre. A felicidade escorreu pela calha e seguiu como rio. Esteve mergulhada em traição todo esse tempo. Como pôde fazer isso comigo? Pensava e batia na cabeça, que doía mais forte. Era um prego. Ele amava outra.
Quis chorar, mas a raiva impediu tanto desespero. Cresceu, então, em coragem. Olhou para cima e odiou o teto. Para o chão e odiou o piso. Para o espelho e odiou-se. Odiou Jorge, sua casa, aquele momento, as letras, a carta, a caneta. Odiou o casamento.
Pensou de imediato em queimar o papel, mas não. Seria sua voz contra a dele. Ninguém provaria a verdade. Pensou em pregar no portão, mas não. Seria condená-lo à guilhotina.
“Estúpida, boba, burra” repetia.
Caiu na cama como um corpo em decomposição.
“Vou matá-lo”. Transformou-se, virou monstro. Socou o colchão, socou os travesseiros. Decretou o fim. E, após cansar-se de tantos socos, ficou parada sem vontade nem de fechar os olhos. Madalena passou horas assim, como estátua; rígida; pedra; mórbida; pálida. E adormeceu sem perceber, de mente vazia.
Sem perceber que as últimas linhas da carta diziam: “Te amo e amarei por toda vida, minha querida, Madalena”.