quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

A carta, Madá

Numa madrugada, quando só, resolveu tirar a limpo uma história que haviam lhe contado sobre Jorge. Acendeu todas as luzes da casa, e revirou os documentos velhos, roupas e tralhas nos quartos e armários. Quis desistir inúmeras vezes, mas inúmeras vezes seguiu em frente com a ideia de desvendar o mistério e revelar aos tomadores-de-conta-da-vida-alheia a inocência de seu marido. Era tarde, estava cansada. Impossível existir tal carta, absurdo, dizia seu coração. Sentiu um leve enjoo no estômago, ardência nos olhos e a vista escureceu. Teve medo de desmaio, respirou fundo e pediu a Deus para ser tudo uma mentira. “Melhor deixar esquecido”. Até que a impaciência invadiu a alma e com pavor suas mãos agiram, quase como máquinas, e derrubaram a montanha de sapatos no fundo do guarda-roupa. Lá estava. A cabeça doeu. No canto esquerdo uma caixa. Objeto de morte ou vida. Cubo preto; revestido por veludo. Antigo; empoeirado; leve; trancado. Mas Jorge era tão estúpido que deixava a chave logo ao lado para não correr o risco de perdê-la.
...
Quando se envolveu na leitura daquele texto Madalena não sabia de mais nada. A folha ainda dobrada continuou dobrada. Bastavam as primeiras linhas para compreender. Era como estar perdida na mata escura, ouvindo vozes que confundem, apenas. Era como se a vida inteira, as coisas, os filhos, fotografias e lembranças fossem ficção e estivessem no último capítulo, no último minuto, acabando para sempre. A felicidade escorreu pela calha e seguiu como rio. Esteve mergulhada em traição todo esse tempo. Como pôde fazer isso comigo? Pensava e batia na cabeça, que doía mais forte. Era um prego. Ele amava outra.
Quis chorar, mas a raiva impediu tanto desespero. Cresceu, então, em coragem. Olhou para cima e odiou o teto. Para o chão e odiou o piso. Para o espelho e odiou-se. Odiou Jorge, sua casa, aquele momento, as letras, a carta, a caneta. Odiou o casamento.
Pensou de imediato em queimar o papel, mas não. Seria sua voz contra a dele. Ninguém provaria a verdade. Pensou em pregar no portão, mas não. Seria condená-lo à guilhotina.
“Estúpida, boba, burra” repetia.
Caiu na cama como um corpo em decomposição.
“Vou matá-lo”. Transformou-se, virou monstro. Socou o colchão, socou os travesseiros. Decretou o fim. E, após cansar-se de tantos socos, ficou parada sem vontade nem de fechar os olhos. Madalena passou horas assim, como estátua; rígida; pedra; mórbida; pálida. E adormeceu sem perceber, de mente vazia.
Sem perceber que as últimas linhas da carta diziam: “Te amo e amarei por toda vida, minha querida, Madalena”.

Um comentário:

  1. Pobre Madalena, sofreu a toa, sem necessidade. E assim acontece com muita gente. Sofre, sem precisar ter sofrido e qdo percebe, já é tarde demais.

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