sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Doce e sal

Eu, louro e perdido nas ruas do centro, conheci Cecília. O calor de duas e vinte e pouca da tarde em Niterói desmorona qualquer um, embatuca-nos em assento, peito contra o vento. A pele abria os poros de onde nasciam as gotículas suadas de líquido e minerais. Isso me coça. Até arde ligeiramente feridas expostas, como sal na carne viva, tempero na sua carne. Eu era sal. Todas aquelas pessoas disputando os fregueses e ecoando berros através das pilastras altíssimas, sustentadoras de prédios iguais, implicavam em uma dor latejante ao redor dos meus olhos. Em dias claros-barulhentos manter abertos os olhos era pecar contra meu próprio corpo. Afinal, a genética cruel estabelecera que já ao ser parido, esse menino, cara de pobre diabo, levaria sempre consigo duas janelas de vidro no rosto para ver o mundo nítido, bem enquadrado, enfim. Mas a nitidez não impedia de me confundir e embolar as ideias. Sem saber direito se direita ou esquerda, eu ia. Era a primeira semana. Eram 19 anos. O asfalto dilatava e o vapor flutuante se tornara perceptível ao longe; as miragens eram desfeitas pelos carros; o lixo envergonha as esquinas; e eu ali, há muitos quilômetros de onde queria estar.
Orientado pela sorte, fui seguindo o instinto feminino que não tenho até avistar uma praça, um Teatro, uma rua larga. A rua larga( despertei)! Apressei os passos, encurtei a troca de pernas, trilhando em fila com gente mais estranha que vi na vida. Se era maratona, nem sei, mas havia uma pressa generalizada, como se o mundo acabasse amanhã: vou ali e já volto. Num pulo. Por essas e outras...
O alívio percorreu a corrente sanguínea quando saboreei a fragrância de mar. Ouvi violinos inconscientemente, juro. De repente, quebrando o gozo do encontro, senti um ar doce tão doce de causar enjoo. E o ar me acompanhou durante boa parte da caminhada, por vezes vigoroso, por vezes débil. Era cheiro mar, doce. Mar, doce. Foi continuamente nesse ritmo que acostumei as narinas ao odor delicado. Andava. Você deve estar se perguntando: onde está Cecília nesta história? Pois bem, não o culpo, dei longas voltas até chegar ao ápice do texto. O que você não sabe, nem eu sabia, é que este aroma, seguindo-me por ruas desconhecidas, era Cecília.
Bem, reconhecendo a travessia para minha estadia, andei próximo ao mar, fotografando as barcas mentalmente, uma a uma, lotadas. Cada vez mais o espaço entre as pessoas na calçada aumentava. O doce de Cecília, que eu ainda não sabia que era dela, nem que se chamava Cecília, parecia guiar-me. Eu ia. O suor molhando os cabelos louros, as pernas um tanto tremulas. Eu ia sal. Os espaço entre as pessoas era maior e maior e maior, até ficarmos eu, o sal, o doce, e Cecília.
À minha frente, dez metros mais ou menos, estava a garota de fios pretos lisos sobre os ombros, o balançado natural de atentar qualquer macho. O jeans na calça, claro e sujo, mochila cor-de-rosa alternando com cinza, e tal. Nas mãos levava muitos cadernos, papéis. Mergulhei em curiosidade. Pensei em ajudá-la, mas o seu perfume continha meu corpo, era quase automático. Não conseguiria acelerar ou ultrapassá-la. Descobri, portanto, que ele não me seguia. Sim eu o seguia.
Atravessamos uma rua perigosíssima e movimentada, íamos diretamente ao mercado do peixe, coincidentemente, íamos. Veio brisa forte que levantou os cabelos de Cecília no charme e poesia entrelaçados. Uma folha de papel foi ao chão, discreta e leve. Quando abaixei-me para pegá-la o doce já havia envolvido-se com cheiro bruto de peixe ou misturado-se com a fetidez humana no mercado. O perfume dela era sobre humano. Impossível de ser confundido. Apaixonante. Morrera naquele instante. Entristeci.
Ao examinar o papel deixado para trás, cuidei dos detalhes nos giros letras; eram uns cálculos, complexos, que não compreendo, nem quero, pois minha grande paixão são as letras, livros e poesias. Não números. Na borda, escrito a caneta cor-de-laranja, o nome: Cecília. Foi então que a fim de retomar meu objetivo virei a favor do mercado e sonhei novamente com o cheiro memorável da garota. Mas logo gelei a alma ao ouvir uma voz feminina me chamar: ei!
Revirei-me e notei a presença dela, todo o perfume a vestia.
Ela sorriu, doce.
Eu, sal.

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